Estava bem tarde. Naquele horário já estaria em casa se fosse um dia qualquer e aquela a linha que estava acostumado a pegar. Toca a campainha e na quadra seguinte desse um dos dois passageiros daquele ônibus. Apressadamente sem nem olhar para trás se afasta do veículo que também se afasta seguindo sua rota.
A calçada irregular estava suja pelas folhas e galhos que caíram por causa da chuva que durou a tarde toda e o começo da noite. Desviava das poças d’água que formavam espelhos que refletia as marquises cafonas das lojas, o tom cinza e o desbotado dos prédios, a iluminação pública laranja onde gotículas formavam ondulações ovais.
Estava frustrado porque tinha demorado mais do que o comum para sair daquele campus e não ganhara carona por causa de um sujeito entrão e sem noção. Estava irritado também, não só pelo episódio da carona, mas também por ter que pegar um ônibus para outro lugar já que os da sua linha deixam de passar, embora não devessem, no campus depois daquele horário.
De certa forma sentia-se humilhado – por ficar para trás e por ficar esperando o ônibus que não viria, abandonado, não reconhecido tanto pelos amigos, que foram embora primeiro e juntos, como no geral. Sentia frio, embora estivesse apenas fresco. Na barriga uma sensação de vazio potencializadas pelo significado que tinha para ele as luzes de natal da cidade.
A sua frente o resultado da exclusão econômica e da falência social, um grupelho de mendigos debaixo de uma marquise dividindo solidariamente seus papelões e jornais. Ficou com medo, atravessou para a outra calçada com antecedência. Normal para quem também constrói de certa forma as barreiras da segregação social.
Andava lentamente e se pôs a pensar em quem não conhecia, não sabia o rosto, a voz, as idéias, o que fazia da vida, apenas deseja ter a companhia para um abraço, um beijo, para um sexo que nunca fez, ter a sensação de segurança, de desejado e pudesse retribuir o mesmo. Pensava que talvez pudesse ser o candidato alguém que conhecesse pela internet.
Na internet existem muitos caras legais, mas moram sempre longe e que talvez não vão gostar dele quando encontrá-lo pessoalmente, caso isso realmente aconteça algum dia. Ficou triste. Na sua frente aparece uma figura que não gosta, tem medo, quer distância, mas respeita. Travestis, pessoas que são para ele tanto pseudo-homens como pseudo-mulheres.
Ele não gosta de mulher e esse é um segredo que poucos sabem e não lhe é interessante muitos saberem, tampouco todos. Mulheres são para ele brochantes, chatas, irritantes. Travestis se parecem com mulheres por isso não gosta deles.
Homem é tão bom, porém tão proibido para ele. Não que vá ser assim tão proibido e sim porque ele pensa que seja. E por ser algo proibitivo, também pensa neles como distantes e difíceis de serem conquistados.
Mas é isso, ele gosta de homens. Adora a voz, a virilidade, a força física, a segurança a que isso sugere, o jeito pragmático, sem a embromação que as mulheres possuem. Gosta da anatomia, dos músculos, do corpo, tudo o que um travesti na sua individualidade nega, inverte e por isso não são homens do jeito que ele gosta.
O medo dos travestis se dá também por pensar que todos eles sabem do seu segredo de liquidificador, do o que realmente lhe faz feliz, o que ocupa sua mente, o que tanto deseja e o que lhe é também uma vergonha. E tem medo que eles de alguma forma manifestem isso numa, quem sabe, cantada ou comentário. Uma cantada seria a situação que lhe deixaria assustado, constrangido, mais irritado e mais frustrado.
Travestis, de acordo com seus conhecimentos, andam armados com lâminas afiadas e a sua integridade física e mental conservada também é um desejo que possui.
Passa indiferente pela figura assim como os mendigos, que tem menos em comum com ele. Segue seu caminho, anda na beirada da calçada pensando numa eventual fuga de algum energúmeno realmente perigoso, como quem sabe um assaltante. Chega a estação, passa o cartão, olha as garis farreando. Repensa sobre tudo e pensa em escrever aquilo em algum lugar.