segunda-feira, 20 de julho de 2009

Sentindo e memoriando a cidade.

I – Aurora Tardia

Acordo e é quase meio dia. Não gosto desse horário para acordar, dá uma sensação de vadiagem e é como se tivesse pouco dia para viver. No entanto o que viver durante o dia eu não sei. Mas enfim, acordo quase meio dia.

Ouço os carros correndo no bairro vizinho, vento soprando nos bambuzais das chácaras e a gritaria dos pirralhos que acordaram primeiro que eu para empinar suas raias, como são chamadas as pipas por aqui, na rua.

II – Primeira Caminhada

Lá pelas quase 15:00hs saio de casa e vou ao Centro. Nessa época do ano incidência de raios UV’s é mais baixa, portanto 30° na cidade quente durante os dias de inverno parecem até com agradáveis 26°. Os moleques, de férias estão correndo pela rua, me olham e eu com a cara apática não me importo com eles que já estão novamente preocupados com suas bicicletas, raias e bolas.

No mp4 ouço Ana Carolina e o vento continua soprando seco meu rosto e meus olhos ardentes. Não sei por que ouço suas baladas românticas, é para ficar frustrado com aquelas músicas que falam desses finais de relação que nunca tive, pois nunca comecei efetivamente uma.

Lá na metade do caminho não são apenas meus olhos que sentem e reclamam incomodando esses menos de 20% de umidade relativa, meu nariz também responde ao clima provocando uma desconcentrante dor na nuca.

E do alto do bairro dá para ver o Norte, de onde vêm as nuvens de chuva da Amazônia que em outra época do ano estariam chegando nessa mesma hora obesas e negras trazendo consigo um vento com cheiro de terra molhada, seiva e o melhor, úmido. Quando chove a cidade é mais bonita, as flores daquela praça e a grama também ficam mais bonitas com água da chuva e não com a da irrigação.

Sinto saudade, pois nessa época o céu é azul anil profundo. Parece que não tem mais fim e é bonito de se ver. Precisa de cuidado, já tropecei muito e levei muita buzinada olhando para cima ao invés de olhar por onde ando. Eu gosto do verão apesar dos finais de manhãs e das tardes quentes, porém noites frescas e úmidas.

Continua tocando Ana Carolina quando desço do céu, quando não olho mais o céu azul, só que desbotado pela névoa. E lá estou chegando à Lotérica com sua fila, do outro lado do córrego já é possível ver os prédios dos bairros mais centralizados.

III – Notando outros


No fim da fila lá está um de vermelho. Fico constrangido, ele está muito bem vestido e eu em funcionais, simples e livres All Stars pretos, jeans e camiseta e nada além disso. Ele olha, eu disfarço e me arrependo porque o rosto dele é muito bonito.

Xingo-me e penso em ficar mais saidinho, corresponder aos olhares e buscar respostas para as expectativas. Aceito isso como verdade, mas não vou fazer isso agora. Deixo isso para outra hora e que seja melhor. Mas é sempre outra hora e que jeito melhor eu não sei. É só desculpa para mim mesmo.

E a fila vai andando e estou eu analisando com inexplicado constrangimento o rapaz a minha frente. E tento olhar para o rosto dele e ele olha na minha direção e eu disfarço como quem quer saber as dezenas sorteados por Senor Abravanel na sua própria loteria.

O cheiro dele é agradável. Entra pelo nariz e desce para o tórax, causa pequenos tremores. É como se preenchesse um vazio de alma que faz com que eu sinta uma alegria, uma satisfação por não sei o que. Continuo na fila... ai como ele é bonito!

Enfim, cada um em seu caixa pagando seu boleto, ele sai primeiro que eu e quando saio não sei para onde ele foi. Deixa, vou para estação onde reparo o assistente de embarque.

Ele não é lindo, mas faz bem meu estilo. Noto que ele está entediado e sinto dó dele. Deixa também. Quando começo a me irritar com a luz do sol incidindo diretamente nos meus olhos o ônibus chega. Que bom, nem meu nariz e nem meus olhos ardem mais.

Motor ruidoso, nem dá para ouvir a Ana Carolina direito enquanto lá fora, parado no semáforo um playboy num Celta rebaixado. Ele é mais lindo que o rapaz da Lotérica. Daí que pressinto que com um playboy eu não me daria tão bem. Sei lá, acho que temos anseios e linguagens diferentes.

E na hora eu penso em quem? Em você Mystica!!! Fico com raiva do meu gaydar, o cara do Celta é hetero para mim, o da Lotérica também. Só que meu gaydar não funciona não é menina?

IV – Paisagem da Cidade

E vou olhando a paisagem da cidade, não tinha me dado conta que os Ipês já estão florindo tingindo a cidade com rosa, roxo e amarelo. Imagino como vai ficar agosto. Vai ser lindo. Pena esse espetáculo da natureza durar apenas algumas semanas. As ruas da cidade que ficam lindas, aqueles flocos amarelos, rosas, roxos e raramente brancos na altura dos postes e embaixo tapetes coloridos, às vezes em cima dos carros.

Vou plantar um ipê amarelo na porta da minha casa. Vou sim e em cinco anos vai ficar tão lindo. Em cinco anos eu vou morar aqui com meus pais ainda? Acho que não, não quero. Mas vai que moro e quando vier aqui aos domingos quero tirar foto do meu ipê amarelo.

No Centro olho para o Oeste, para onde o Sol está indo. Tenho vontade de segui-lo. Só que seguir o Sol é impossível. Vou em um lugar e a outro, compro isso, pago aquilo, compro sorvete e me sento. Lugar barulhento, não precisa de tantos carros, não precisa de tanto som, não precisa de tanto panfleto.

Nos prédios desbotados alguma arte patrocinada pelo Estado nas grandes e antes vazias fachadas. Quando não, banners enormes mandando as pessoas consumirem, cerveja redonda, falar 20X mais, presentear o pai com perfume do boticário. Acima deles um helicóptero carregando alguém que não tem tempo para o caos daqui de baixo.

A tia de saião e perna cabeluda por detrás do albão lendo com microfone e uma caixa de som anêmica em vista dos motores urbanos está pregando para quem não está ouvindo nada do que ela diz. Três viaturas da polícia estacionadas na calçada do banco que me acusou de uma dívida que nem eles sabiam.

Continuo tomando meu sorvete e me dou conta que desde que cheguei naquele bairro barulhento eu estou com a mania de olhar para as mãos dos homens procurando por alianças. Acho tudo isso um tédio e me levanto, com minhas sacolas ouvindo incomodamente o tilintar das moedas no bolso.

V – Segunda Caminhada

Vou descendo pelas ruas e vou me lembrando de outras memórias, do ensino médio, do que já falei e já fiz em tal lugar com que pessoas em outras oportunidades. Sei que no local que estou tem mais gente do babado do que posso imaginar e muita gente passa a ser suspeita até prove o contrário.

Então percebo e paro rindo ao notar que como que em piloto automático estou indo para o parque lá embaixo, onde ao lado acontece a parada gay daqui. Nesse ano vou à parada, se eu tiver companhia. Viro na próxima esquina, atravesso e na outra quadra, lá na metade dela, eu arrogante aperto a botoeira e faço o sinal fechar para que eu e outros atravessem a faixa para pedestres em segurança.

E olho para as pessoas e me lembro de London, London do Caetano Veloso, só que na voz da Gal Costa. Então penso, “é bom estar vivo e eu concordo”.

Estacionado na grande calçada um possante utilitário esportivo off-road, um Hyundai VeraCruz. Que lindo é ele, adoro carros assim. Quando deixo de olhar feito bobo para o carro e olho para onde ando, gritando comigo está um ciclista vindo em rota de colisão. Deu para perceber que ele era bonitinho e para desviar da bicicleta.

Fiquei puto com aquilo, uma calçada daquela largura ele tinha que vir justo na minha direção e tão rente aos carros como eu? Mas comecei a achar engraçado. Se tivéssemos trombado – putz quem fala trombado?- seria o culpado pelo acidente o capitalismo e o seu consumismo? Pois ao olhar para o carro, que está agora pelo menos longe, das minhas condições, esqueci da vida real e das coisas mais imediatas, como o meu caminho.

Achei engraçado também, pois vai que o ciclista fosse gay. Vai que ali conversando acabássemos confiando um no outro e ficássemos juntos. E acho engraçado porque tudo isso que eu mentalizo é muito novelístico, muito livresco, muito intencional.

VI – Recomendações

Na assistência, onde quase de frente um ipê flori frondosamente, descubro que a Kodak não enviou minha máquina nessa remessa. Mesmo assim amo essa marca, os produtos são de boa qualidade e ainda quando estragamos o produto por descuido ela conserta o mesmo. Comprem produtos Kodak, são bons e não estragam por si só, se estragarem, mesmo que por sua culpa, é provável que a Kodak cubra o conserto, mesmo que ela deixe o seu produto por mais de 30 dias no assistência. Aff cu.

VII – Notando o que eu não quero

Vou finalmente embora para casa. Estou perto da Rodoviária, que é também um shopping super freqüentado por pessoas desse nosso meio, e olho a quantidade de destinos e origens, saindo e chegando a cidade. De repente, entre as gueirobas, palmeiras do cerrado, plantadas no canteiro central da avenida uma velhinha, manca, humilde, semblante sofrido vendendo panos de prato brancos e ornamentados com pinturas e bordados. Eram bonitos e ninguém comprava.

O que era de cortar o coração não era a solidão da velhinha ali naquele semáforo, tentando vender para pessoas isoladas em outros mundos, na verdade bolhas utilizadas como potentes e confortáveis carros. Cortava o coração o seu jeito manco e melancólico de sair da avenida e voltar para o começo do cruzamento, onde esperava o instante em que o trânsito parava para tentar vender seus panos de prato novamente.

Eu senti raiva, da velhinha. Sentia raiva porque ela me deixava deprimido, o que eu estava tentando não ser. Sentia raiva porque ela me fazia sentir responsável. Ela não está no semáforo porque quer ou porque um dia quis. Ela não é a culpada pelo fracasso dela. Culpados são muita gente e uma engrenagem suja tem culpa. E senti raiva dela porque enxergá-la me fazia pensar nisso tudo e saber que eu estou numa situação acomodado.

Pensei, ah que tosco. Outro pensamento messiânico meu. Piaget disse que isso era lá na adolescência e que raiva, ainda estou na adolescência com 20 anos. Senti raiva de mim, da minha comoção e por aí vai. Finalmente chega o circular para me levar para longe dali.

VIII – Finalmente embora

Lá dentro uma pessoa do babado, pena efeminada e demasiadamente feia para os meus critérios de beleza. Achei fofinhas o casal de lésbicas. Após entrarmos no terminal tive a confirmação, as sapas e o gay lá moram no meu bairro. Eita Jardim que está ficando colorido e não é pelas flores ou pelo nome, sim pelas pessoas.

Escrevi nesse embalo e em duas horas, tentando ser espontâneo e não ser autocensurante, seis páginas a respeito de mais um dia em que fiz coisas para mim comuns e nada interessantes. Mas isso me faz concluir o seguinte, o óbvio é complexo. Mas deixa a filosofia de banco de rodoviária para lá, pois já escrevi muito por hoje e não sei se alguém vai ler isso. Mas vai sim e tomara, porque eu quero isso.