Quando criança, ganhava do meu pai todo mês dinheiro para comprar revista Quatro Rodas. Minha mãe era contra porque não via em comprar aquelas revistas nada menos que um desperdício de dinheiro, que nunca fez falta para nós, mesmo que aquilo fosse o meu prazer e contribuísse em muito para ampliar meu vocabulário e afinar minha leitura.
Mas meu pai não dá muitos ouvidos a minha mãe e geralmente após do 5º dia do mês dava dinheiro para eu comprar a revista que eu passara um mês esperando. Um dia, lá por volta dos meus 11 anos, cheguei da escola, almocei, lavei as louças – eu ficava sozinho em casa após os oitos anos – calcei um tênis mais sujinho e fui eu feliz da vida debaixo de um Sol quente, provavelmente não era o de maio, comprar a minha revista Quatro Rodas.
Na banca em frente à escola ainda não havia chegado a QR daquele mês, o que de certa forma alimentava a minha idéia que eu precisava morar em um bairro nobre e não nesse típico bairro proletário de Goiânia. Então, sozinho eu resolvi descer até a outra praça, na qual passa a principal avenida da cidade, a Anhanguera, logo, muita gente, muitos carros, muitos ônibus e longas carretas que vão para o pool de combustíveis da BR Distribuidora.
Lembro que minha barriga ficava alternando entre o normal, a sensação de almoçado, e o frio do medo de aí se mamãe me pega indo para a zona proibida sozinho. Cheguei à esquina que dava para a Avenida Anhanguera, na qual até hoje existe uma loja de frutas. Em frente à loja de frutas havia um homem alto, branco, de olhos verdes, de bermuda e chinela, em pé, como quem estivesse esperando por alguém ou simplesmente pensando na morte da bezerra.
Não dei lá muita atenção para o homem e como não estava vindo mais carros, eu atravessei a Anhanguera com o sinal verde para eles, porém com segurança na faixa de pedestres. Cheguei lá na banca de revista da outra tão temida e buscada praça e qual não é a minha surpresa, ela estava fechada.
Tudo bem, mas agora a história vai ficar tensa, eu acho. Fiquei meio triste, perdi a caminhada, me expus ao perigo, sem contar que estou cansado e suando. Atravessei a avenida e comecei a subir de volta para casa. Como eu estava na “cidade proibida” tive que apertar o passo e subir depressa, mas ouvi passos acelerados atrás de mim. Continuei andando depressa e quando olho para trás está o cara que estava em frente à frutaria vindo logo atrás.
Olho para frente e escuto:
- Olá garoto!
- Oi! – no sentido de quem é você?
- Passeando muito?
Então pensei que fosse melhor não dar atenção, minha mãe falou que não se pode falar com estranhos. Mesmo assim ele continuou falando depois de alguns segundos.
- Aí hein, só passeando né?
Eu achava que minha barriga estava gelada quando eu havia descido para A+A ANHANGUERA. Mas não estava, ou melhor, estava, ela só não havia congelado como naquele momento. Afinal de contas o que esse sujeito quer comigo? Isso eu descobri em partes no próximo momento.
- Então, você é um garotinho muito bonito... ...Não quer ir até lá em casa?
Lembro que havia tropeçado e dado com as mãos no chão e em algum momento e ele falou:
- Num está afim de ir lá em casa não?
Olhei para trás, para o rosto do sujeito, olhei para o meio da avenida que eu estava subindo, vinha muitos carros. Eu estava sem fôlego, tentava andar rápido, mas ele, claro, era mais rápido que eu.
Finalmente não tinha mais nenhum carro vindo, atravessei como se isso melhorasse alguma coisa. Ele ficou do outro lado da avenida e me olhava a todo instante. A cada vez que ele me olhava eu sentia mais medo. Cogitava que ele pudesse me pagar à força, o que ele conseguiria porque era mais forte e maior que eu, poderia me bater e dizer que sei lá, que fosse aparentado meu e levasse para fazer sabe-se lá o que na casa dele.
Eu não era ingênuo assim como aparentei ao falar sobre desobedecer minha mãe e ir até onde ela não me autorizava sozinho. Eu sabia bem dos perigos que corria, embora mesmo assim ainda acho que as restrições da minha mãe para aquela época eram paranóias dela. Até hoje ela é paranóica. Então, não sendo ingênuo eu conseguia pensar na minha mãe chorando no Datena, que na época ainda trabalhava na Record e não ficava enchendo o saco com esses dizeres sobre pedofilia. Já a pedofilia era uma palavra nova para mim, mas que fazia alguma idéia, naquela época foi recente o escândalo de um médico bem conceituado chamado Eugênio sobrenome russo.
Logo aquele cara estranho foi se distanciando, parece que ele desistiu de ganhar minha confiança, viu que eu não era tão bobo quanto aparentava. Mesmo assim eu estava com medo, eu sabia que tudo podia acontecer comigo, mas não pensava que poderia ser tão escancaradamente assim, ou pareceu. O sujeito virou numa esquina qualquer, antes de chegar a desconfiar ao certo onde eu moro.
Perto da Igreja aparece um carro que buzina para mim, dentro dele era o meu professor de catequese me oferecendo uma carona até minha casa. Respirei aliviado e o que aconteceu depois não lembro assim tão bem, mas cheguei em casa são e salvo.
A respeito de Deus lembro que pensei nele como uma entidade de fato muito bondosa e protetora, sendo o meu catequista a forma colocada por Deus para eu chegar em segurança até minha casa. Mesmo pensando em Deus como alguém protetor, pensava nele como alguém semelhante a minha mãe. Tipo, ele havia me tirado de uma enrascada, mas isso não queria dizer que ele não estivesse irritado comigo por desobedecer a minha mãe. Se o verbo se fizesse carne, ele haveria de me dar um sermão durante horas.
Fiquei um dois dias sentido calafrios quanto ao pensamento sobre esse fato. Contei ao meu amigo uma vez sobre tal coisa e foi uma pincelada, mas também foi a única vez que tive coragem de contar a alguém sobre esse incidente. Nunca falei do assunto a ninguém, nem mesmo com meus pais até hoje. Sobre Deus, bem, o meu catequista ter aparecido lá foi apenas uma coincidência é nisso no que acredito hoje.